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ConJur cita Sacha Calmon em artigo sobre imunidade tributária de livros eletrônicos
01 de abril de 2013
O professor Sacha Calmon teve sua tese sobre imunidade tributária de livros eletrônicos citada em artigo de mesmo tema, publicado pela Revista Eletrônica Consultor Jurídico.
Interpretação da Constituição
Livros eletrônicos devem ter imunidade tributária
Por Gabriela Shizue Soares de Araújo
Pretende-se com o presente estudo demonstrar que a imunidade tributária dos livros prevista em nossa Carta Magna de 1988 não está limitada à sua forma tradicional impressa em papel, mas que, com o desenvolvimento da tecnologia e da sociedade, e através de uma interpretação extensiva da Constituição, utilizando-se de elementos da Hermenêutica Constitucional, a imunidade dos livros independe de seu suporte físico, sendo também imunes de impostos os livros eletrônicos, veiculados através de mídias como CD-Rom e DVD.
Conceito
Mister se faz, em primeiro lugar, definir o conceito de imunidades.
As imunidades são vedações constitucionais à tributação de determinadas pessoas ou objetos, seja pela natureza jurídica que têm, seja porque realizam certos fatos, seja, ainda, por estarem relacionadas com dados bens e situações.
As normas de imunidade, portanto, estabelecem expressamente a incompetência das péssoas políticas de direito constitucional interno para expedir quaisquer regras instituidoras de tributos que alcancem as pessoas ou objetos por elas protegidas.
José Wilson Ferreira Sobrinho (in Imunidade Tributária, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1996, página 102) vai mais longe, ao afirmar que a imunidade confere ao seu destinatário o direito público subjetivo de não ser tributado. Ou seja, trata-se de uma incompetência da pessoa política/Fisco (ou limitação, como alguns doutrinadores entendem) de tributar uma determinada entidade, e, por outro lado, trata-se de um direito público que essa entidade tem de não ser tributada.
A Constituição Federal, em seu artigo 150, inciso VI, dispõe sobre algumas situações em que o poder público está proibido de instituir impostos, dentre as quais nos interessa aquelas previstas na alínea “d”: “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”.
A imunidade tributária, que não está presente apenas no artigo 150 supra referido, mas que pode ser encontrada também em outros dispositivos espalhados por nossa Carta Magna, pode ser definida, em suma, como “uma forma qualificada ou especial de não-incidência, por supressão, na Constituição, da competência impositiva ou do poder de tributar, quando se configuram certos pressupostos, situações ou circunstâncias previstas pelo estatuto supremo”. (FALCÃO, Amílcar de Araujo. Fato Gerador da Obrigação Tributária, 2.ed, São Paulo, Revista dos Tribunais, página 117.)
Classificação das imunidades
Existem duas classificações doutrinárias para a imunidade tributária, que se baseiam no critério escolhido pela Constituição Federal para concedê-la: (i) se o critério escolhido for a qualidade da pessoa, a imunidade será pessoal ou subjetiva, como a dos partidos políticos, dos entes federados, das instituições de educação e assistência social etc; por outro lado, (ii) se o critério for um bem, a imunidade será material ou objetiva, como a do livro, do jornal, dos produtos industrializados remetidos ao exterior etc.
Excepcionalmente, encontramos também a imunidade mista, em que a Carta Magna exige qualidades relacionadas tanto à pessoa como ao bem. Um exemplo é a imunidade do ITR (Imposto Territorial Rural), que só é concedida à gleba rural de uma determinada área prevista em lei (objetiva), desde que o proprietário que a cultive não possua outro imóvel (subjetiva).
A imunidade dos livros, jornais, periódicos e do papel destinado à sua impressão (CF, artigo 150, VI, ‘d’) encaixa-se no âmbito das imunidades objetivas, ou seja, o poder público não pode cobrar impostos sobre referidos bens. Não importa a pessoa que os comercializa, quem vende, quem compra, quantas vezes o bem circulou: se for um livro, não será tributado.
Conforme destaca Sacha Calmon Navarro Coelho (Comentários à Constituição de 1988 — Sistema Tributário — 6ª ed., Editora Forense, Rio de Janeiro: 1997, página 378), essa imunidade filia-se aos dispositivos constitucionais que asseguram a liberdade de expressão e opinião e partejam o debate de idéias, em prol da cidadania, além de simpatizar com o desenvolvimento da cultura, da educação e da informação, de forma que a interpretação que se deve fazer da Constituição, in casu¸é muito mais teleológica do que literal.
Nesse sentido já se manifestou o colendo Supremo Tribunal Federal, em voto da lavra do ministro Carlos Velloso, proferido no RE 206.127-PE:
“Essa interpretação prestigia o sentido finalístico da imunidade inscrita no referido dispositivo constitucional (artigo, 150, VI, letra d), que é o de amparar e estimular a cultura através dos livros, periódicos e jornais; garantir a liberdade de manifestação do pensamento, o direito de crítica e a propaganda partidária — segundo o magistério de Baleeiro (Aliomar Baleeiro, — Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar — Forense, 4ª ed. 1974, página 195)”.
Destarte, é possível concluir que, se a imunidade dos livros, jornais e periódicos tem por fim assegurar a liberdade de expressão do pensamento e a disseminação de cultura, não importa se o livro é editado em papel ou em meios eletrônicos, o que importa é que o conhecimento chegue ao maior número de pessoas.
Afinal, os meios magnéticos, como o Compact Disc (CD), cumprem, no século atual, com os mesmos objetivos que os livros impressos. Aliás, não se pode deixar de pensar que os CDs, nessa era tão tecnológica, estejam até mais acessíveis do que os livros, principalmente para a geração nascida a partir de meados dos anos 1990, quando o computador e a internet já estavam completamente incorporados na rotina da nação.
Pontos polêmicos
A problemática da imunidade dos livros eletrônicos fica mais evidente quando se trata do ICMS, que está previsto na Constituição Federal de 1988 como um imposto estadual incidente, entre outras coisas, sobre operações relativas à circulação de mercadorias.
A maioria dos estados não reconhece a imunidade dos livros eletrônicos e acaba prejudicando toda a cadeia comercial envolvida, principalmente se considerarmos que, nos caso específico dos CDs e DVDs, existe um convênio do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária) que determina o recolhimento do imposto incidente sobre esses produtos através da substituição tributária (Protocolo ICM 19/85).
Entretanto, apesar da interpretação literal e limitada das Secretarias de Fazenda Estadual (e daí se apresenta também o problema de investigar a posição do intérprete na aplicação da norma), estamos diante de uma imunidade objetiva, o que se pode concluir pela utilização dos enunciados hermenêuticos na interpretação extensiva do texto constitucional.
Sobre o assunto, vale transcrever decisão do egrégio Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 432.442/RJ, de relatoria do sábio ministro Marco Aurélio:
“Há de se conferir a maior eficácia possível ao texto da Carta da República, postura básica quando se vive em um Estado Democrático de Direito. A razão maior do dispositivo realmente não é outra senão o estímulo à educação, pouco importando que, nele, não se aluda, de forma expressa, a fitas que acompanham livros, estas, em última análise, são tidas como material complementar ao aprendizado do conteúdo veiculado. Abandonem a interpretação meramente verbal, gramatical: embora seduzindo, por mostrar-se a mais fácil, deve ser observada em conjunto com métodos mais seguros, como é o teleológico. O reconhecimento, pela corte de origem, da existência de unidade didática, voltada ao ensino, é suficiente a dizer-se da fidelidade do Órgão julgador à Lei Fundamental”.
O que se verifica é que, apesar da insistência dos órgãos arrecadatórios em tributar os livros eletrônicos, muitos de nossos tribunais já vêm entendendo que a imunidade consagrada pelo artigo 150, VI, d, da Constituição Federal, evolui para abranger novos mecanismos de divulgação e propagação da cultura e informação de multimídia, como os CDs, os audiolivros, a internet etc.
O problema quanto à imunidade dos livros eletrônicos, porém, não se resume aos produtos acabados. No artigo 150, VI, “d”, da Carta Magna, existem quatro objetos distintos abrangidos pela imunidade objetiva: (i) os livros; (ii) os jornais; (iii) os periódicos; (iv) os papéis ou insumos utilizados para imprimir livros, jornais e periódicos.
Dessa forma, quando se fala na imunidade dos livros eletrônicos, está se tratando da imunidade do item (i) acima descrita, isto é, a imunidade dos livros (produtos acabados). Aqui não se está tratando da imunidade individual do insumo utilizado para fazer o livro, que, pelo texto expresso da Constituição, seria o papel. Sob esse ponto de vista, irrelevante se o livro será editado em papel, em fita magnética, em CD ou DVD, pois a Constituição não especifica que tipo de livro é imune e nem restringiria a imunidade aos livros feitos de papel.
Porém, estendendo um pouco mais o nosso campo de estudos, se chegarmos à conclusão de que os livros eletrônicos são mesmo imunes, não poderíamos também interpretar que os materiais destinados à sua produção também o são?
Interpretação extensiva
A Hermenêutica Jurídica, conforme leciona Carlos Maximiliano, é o ramo da ciência dedicado ao estudo e determinação das regras que devem presidir o processo interpretativo de busca do significado da lei (ou norma constitucional). A interpretação, nesse contexto, nada mais é do que a própria aplicação da hermenêutica. Pois é à Hermenêutica e seus enunciados que se pretende recorrer para concluir a pesquisa proposta.
Segundo o saudoso constitucionalista Celso Ribeiro Bastos (Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, página 22), interpretar é uma arte e é sempre um pressuposto necessário para a aplicação da regra jurídica, devendo o intérprete imprimir um significado válido à norma interpretanda ao aplicá-la ao caso concreto:
“Como as tintas que se apresentam ao pintor, os enunciados hermenêuticos são deixados ao tirocínio do intérprete. Assim como as tintas não dizem onde, como ou em que extensão deverão ser aplicadas na tela, o mesmo ocorre com os enunciados quando se enfrenta um caso concreto. Por isso, não é possível negar, da mesma forma, o caráter evidentemente artístico da atividade desenvolvida pelo intérprete”.
Toda norma constitucional precisa ser interpretada, não existindo uma única interpretação possível, posto que o aplicador do direito não é um autômato e o direito não é uma ciência exata, matemática, como às vezes parecem entender os representantes da máquina arrecadadora estatal.
É o que se extrai das palavras do jurista italiano Carbone (Camelo Carbone, L´Interpretazione delle Norme constituzionali”, Padova, 1951, página 13), “o velho aforismo ‘in claris non fit interpretatio’ é um princípio desprovido de sentido e que só se pode explicar retornando ao período de sua enunciação, no qual, por uma inveterada servidão ao conteúdo literal da norma, se deixava de estender a indagação a um horizonte mais vasto e verdadeiramente compreensivo da própria norma”.
Existem diversos métodos interpretativos à disposição do intérprete, que deverá saber quais e como aplicá-los ao adaptar a norma ao caso concreto — infelizmente, isso não vem ocorrendo com relação à imunidade dos livros eletrônicos.
Os métodos clássicos de interpretação remontam ao ano de 1840, quando Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito, distinguiu os métodos gramatical (literal), sistemático, histórico e teleológico. Nenhum desses métodos, como é consenso na jurisprudência e na doutrina, devem ser absolutizados, mas antes, eles se complementam durante o processo interpretativo. Savigny bem declarou, à época, que tais métodos não constituíam formas de interpretação a serem escolhidas, mas diferentes atividades a atuarem conjugadas, para se obter uma interpretação bem-sucedida.
Conforme Konrad Hesse (Escritos de Derecho Constitucional. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983) esclarece, a interpretação se faz a partir do texto da norma (interpretação gramatical), de sua conexão (interpretação sistemática), de sua finalidade (interpretação teleológica) e de seu processo de criação (interpretação histórica).
Sendo assim, embora o intérprete deva conter-se pelo texto da Constituição, não podendo desprezar de todo a interpretação gramatical, ao mesmo tempo deve considerar mais uma série de fatores, como o fato da norma estar situada dentro de um sistema, de ser provida de um fundamento racional e uma finalidade própria, bem como deve observar a circunstância histórica que gerou o nascimento daquela norma.
Sobre os métodos interpretativos aplicáveis às normas constitucionais, existem diversos posicionamentos do egrégio Supremo Tribunal Federal, mas ainda não há consenso com relação à interpretação extensiva da imunidade dos livros impressos em papel para os livros eletrônicos. É consenso, entretanto, que não deve ater-se o intérprete à mera interpretação literal:
“Porém, muito embora a teoria do Direito Constitucional aponte para a presunção de correção dos termos pousados nas constituições, ante o alto grau de elaboração e análise a que foi submetido o texto, não se haverá olvidar que o nosso processo constituinte foi feito de maneira bastante insatisfatória e atravancada, apesar do longo período elaborativo, legando à Norma Suprema o infeliz apelido de ‘colcha de retalhos’. Deve ser visto com a devida cautela o critério interpretativo de conceder muita importância ao uso dos termos, haja vista a freqüência com que usou-se um termo por outro na Constituição Federal”. (RTJ, 143:27, 1993, ADIn 378-DF, rel. min. Sydney Sanches).
“Recusando-se a caminhar com a interpretação literal, gramatical, do artigo 33 do ADCT, o Tribunal a quo decidiu de conformidade com o contexto constitucional. Recuso-me, também, a aplicar, na hipótese, a interpretação simplesmente gramatical, literal, do artigo 33 do ADCT. Por isso, incluo, na palavra atualização, que está inscrita no artigo 33 do ADCT, os juros moratórios e compensatórios, os juros que são devidos. Repito: o acórdão do Tribunal paulista decidiu de conformidade com o espírito da Constituição, de acordo com o contexto constitucional. É a regra velha de interpretação, que vem dos romanos, que ‘lex non est textus sed contextus’”. (STF, AI 487.968/SP, rel. Min. Carlos Velloso, decisão monocrática, DJ 5 de maio de 2004).
Os métodos teleológico e sistemático, segundo a maioria dos doutrinadores, são, em realidade, os mais importantes na interpretação constitucional, principalmente se considerarmos os princípios da unidade da Constituição e da força normativa da Constituição.
Bem lembra o jurista Luis Roberto Barroso que o legislador brasileiro, em uma das raras exceções em que editou uma lei de cunho interpretativo, agiu, precisamente, para consagrar o método teleológico, ao dispor, no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. O intérprete deve sempre voltar-se às finalidades mais elevadas do Estado, que são a justiça, a segurança jurídica e o bem estar social.
E para descobrir quais são as finalidades do Estado o intérprete deve valer-se também da interpretação sistemática, visualizando o ordenamento jurídico como um todo, não apenas no texto constitucional, mas também nos princípios que ele carrega.
Desta forma, quando se lê o artigo 150, inciso VI, alínea “d”, da Constituição Federal, percebe-se claramente que a intenção do legislador era proteger e incentivar a cultura e a divulgação de informação à sociedade (interpretação teleológica), mas como em 1988 não havia ainda acesso a computador e aos meios eletrônicos como temos hoje, em 2011, o Constituinte acabou sendo omisso com relação aos livros eletrônicos (interpretação histórica), muito embora o nosso ordenamento jurídico como um todo incentive a cultura, a educação e o acesso à informação (interpretação sistemática).
Não pode, portanto, o intérprete, através de uma leitura simplista do Texto Constitucional, se negar a reconhecer a imunidade dos livros eletrônicos, simplesmente porque à época da edição da Carta Magna atual essa espécie de livro ainda não existia, mas apenas livros em papel.
Destarte, se a intenção do constituinte ou de nosso ordenamento jurídico fosse proteger o papel, a Constituição não falaria em livros, mas apenas em papeis. Pelo contrário, a intenção é proteger a leitura, a cultura, a informação.
Até mesmo realizando uma interpretação puramente gramatical do texto constitucional se percebe de forma nítida que a imunidade é concedida para os livros e também para os papéis destinados à sua impressão, ou seja, não somente para os livros e não somente para os papéis. Isso não significa que só possam existir livros de papel. Tanto é que o Supremo Tribunal Federal já pacificou a interpretação de que a imunidade do papel destinado à impressão dos livros estende-se também às capas duras, por exemplo.
É de extrema importância que as Secretarias de Fazenda Estaduais reconheçam a imunidade dos livros eletrônicos pela simples eficácia e validade do texto constitucional, sendo completamente inconstitucionais quaisquer decretos, regulamentos ou mesmo leis que digam o contrário.
Se a imunidade dos livros eletrônicos ficar adstrita apenas àqueles que obterem uma decisão judicial individual, o próprio cumprimento dessa decisão judicial será prejudicado, pois, principalmente no caso do ICMS, apenas um elo da cadeia comercial quedará imune, prejudicando o restante da cadeia e, conseguintemente, o consumidor final.
Gabriela Shizue Soares de Araújo é advogada, mestranda em Direito Constitucional pela PUC-SP, vice-presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Subseção de Osasco da OAB-SP e diretora de relações intersindicais do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo.