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Artigo de Professor Sacha Calmon é publicado no Conjur

22 de janeiro de 2010
A Revista Eletrônica Consultor Jurídico publica artigo do professor Sacha Calmon.
 
 
VÍTIMA DEVEDORA
Produtos roubados não podem ser tributados
 
 
Os fatos ilícitos não geram tributos, pois o Estado não pode se associar à criminalidade ou dela tirar proveito. O Código Tributário Nacional, no artigo 3º, é conclusivo: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória (obrigação de dar, de natureza pecuniária), em moeda ou em valor que nela se possa exprimir (índices como ORTN etc.), que não constitua sanção de ato ilícito (ou seja, que não se afigure como pena pecuniária imposta aos autores de atos ilícitos), instituída em lei (obrigação legal, e não contratual) e cobrada administrativamente (lançada por agentes competentes do Estado), com observância das leis (atividade administrativa vinculada à lei e, portanto, não discricionária, vedado o arbítrio dos funcionários fiscais)”.
 
Essa definição de tributo é das mais perfeitas do mundo, juridicamente falando, porque: 1) extrema o tributo, cujo fato gerador é lícito, da multa, cujo fato gerador é a prática de ato ilícito; 2) diz que a obrigação tributária vem da lei, e não do contrato, como a paga de um aluguel; 3) distingue o tributo — necessariamente lançado pelos funcionários públicos competentes — de outras obrigações, algumas até de natureza privada, que também são impostas por lei, como o pagamento do seguro obrigatório de prédios ou a obrigação de alimentar, que não exigem intermediação administrativa.
 
Quanto aos tributos, como dito, os seus fatos geradores são sempre lícitos. No caso dos impostos, denotam a capacidade contributiva dos contribuintes: ter renda (IR), imóveis urbanos (IPTU), veículos (IPVA), imóveis rurais (ITR), importar ou exportar (impostos de importação e de exportação), vender mercadorias ou prestar serviços de transporte não local ou de comunicações (ICMS), prestar serviços de qualquer natureza (ISS) e assim por diante.
 
Nas taxas e contribuições, o Estado nos presta um serviço ou exerce o seu poder de fiscalização. Por isso pagamos um habite-se, uma contribuição em troca da aposentadoria, a obtenção de um passaporte, um alvará de construção ou uma taxa de coleta de lixo e de esgoto.
Como visto, são fatos lícitos, sejam eles do contribuinte ou do Estado, que não pode exigir impostos sobre produção e circulação de bens e serviços (ICMS e IPI) quando, no curso de uma circulação de mercadorias, elas são furtadas. É absurdo que a vítima do crime de furto tenha de pagar ICMS e, se for produto industrializado, IPI pela saída da mercadoria de seu estabelecimento promovida pelo ladrão. Como se diz popularmente: “Depois da queda, o coice”.
 
Vários fiscos exigem imposto de mercadorias roubadas (cigarros etc.). A operação que dá ensejo à circulação é todo negócio jurídico que transfere a mercadoria desde o produtor até o consumidor final. Alberto Xavier explica: “O imposto não incide sobre a mera saída ou circulação física que não configure real mudança de titularidade do domínio”. A teorização aplica-se também ao IPI. Entretanto, as entradas e saídas físicas apresentam serventia. Mudemos o momento do crime: as mercadorias estão em trânsito e são furtadas. Prevalece o brocardo latino res perit domino (a coisa perece com o dono).
 
Se a venda é FOB, já houve a entrega, e os impostos já incidiram, devendo ser recolhidos pelo vendedor. O preço deve ser pago, e os créditos de ICMS e de IPI devem ser aproveitados pelo comprador, e a Constituição só determina o estorno em caso de isenção ou não incidência (imunidade ou isenção, art. 155, parágrafo 2°, inciso II). A nossa não cumulatividade se orienta por períodos de tempo: tudo que entra tributado (a entrada dá-se no momento da entrega) gera crédito a deduzir, e tudo o que sai tributado gera débito a pagar. Do ponto de vista do adquirente das mercadorias, dá-se apenas a entrada (crédito), mas não a posterior saída (débito), pois não poderá revender os bens que lhe foram furtados. Mas não por culpa sua, mas da ineficiência da segurança pública do Estado, que não pode prejudicar o particular, proibindo-lhe créditos por tributo que suportou.
 
Se a venda é CIF, ao contrário, a mercadoria se perde nas mãos do vendedor, antes da entrega (que constitui, já se disse, o aspecto temporal do fato gerador do ICMS e do IPI). Se o comprador ainda não pagou, não o fará. O negócio jurídico se aperfeiçoou, mas o vendedor terá se debitado do ICMS e do IPI. Deve estornar os débitos, pois o fato gerador não chegou a ocorrer, mas faz jus aos créditos relativos aos insumos utilizados na produção das mercadorias furtadas (os impostos embutidos no preço dos insumos foram pagos ao Estado e suportados pela vítima do crime). A negativa dos créditos seria um terceiro golpe no contribuinte vitimado pelo roubo, por culpa in vigilando do Estado.
 
SACHA CALMON é advogado tributarista, professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sócio do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados.
 
Revista Consultor Jurídico, 22 de janeiro de 2010
 

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