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Artigo de Henrique Napoleão Alves é publicado pelo Conjur

25 de agosto de 2009
A revista eletrônica Consultor Jurídico publica artigo de Henrique Napoleão Alves, intitulado “Tributação está na contramão dos Direitos Humanos”.
  
 
Tributação está na contramão dos Direitos Humanos
 
Por Henrique Napoleão Alves
 
Em texto veiculado na Revista Consultor Jurídico do dia 27 de julho de 2009, o professor Renato Lopes Becho tratou de algumas das relações entre Direitos Humanos e tributação, esclarecendo que o Estado deixa de ter o simples dever de respeito às leis para se fundamentar segundo o cumprimento da “finalidade do sistema jurídico: a proteção do homem”. Dito de outro modo, o Estado Democrático de Direito, superação do positivismo legalista, tem nos Direitos Humanos um padrão do que é justo e, em última análise, a justificativa de sua existência.
 
Apesar de mencionar outros aspectos da tributação, como sua função de “manutenção da máquina pública” ou de “redução das desigualdades econômicas”, o texto do professor Brecho tem um enfoque maior em apenas um dos pontos de interseção entre Direitos Humanos e tributação, que poderia ser resumido pela dicotomia “garantias e liberdades individuais do contribuinte vs. atuação do fisco”.
 
Sem prejuízo da salvaguarda do respeito à individualidade e à privacidade defendidos pelo autor, e aproveitando o ensejo da discussão sobre tributação e Direitos Humanos, gostaria aqui de tratar brevemente de outro tipo de “desrespeito e opressão do Estado fiscal”, que, ao que me parece, é responsável direta e indiretamente pelo maior número de violações de Direitos Humanos no nosso país: o papel de fomentador das desigualdades econômicas que desempenha o nosso sistema tributário.
 
A ordem constitucional brasileira fez uma clara opção por um Estado com muitos encargos, sobretudo positivos, na promoção dos Direitos Humanos — e, em especial, na erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, da Constituição).
Por essa razão, é natural que o Estado tenha uma arrecadação proporcional e compatível com os seus encargos sociais, e é evidente que esta arrecadação, para ser condizente com o artigo 3º, inciso III, da Constituição, deve ser feita de maneira progressiva. Não trato aqui, portanto, das previsões constitucionais de progressividade em relação a alguns tributos, como quando a Constituição cuida do Imposto de Renda e do Imposto Territorial Rural (art. 153), ou ainda quando faculta a progressividade do IPTU em razão do valor do imóvel e da função social da propriedade (art. 156), mas da obrigação constitucional mesma de se estabelecer um sistema tributário que seja, no todo, progressivo.
Até aqui, nada de novo. Também não trago nada de novo ao lembrar que a redução das desigualdades regionais e sociais tem um impacto positivo na efetivação de Direitos Humanos. Afinal, como negar que uma distribuição mais equânime da renda implica maximização do direito de cada indivíduo a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família (art. 11, parágrafo 1º, do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Decreto 591/92), ou mesmo do acesso aos direitos sociais descritos no art. 6º da Constituição?
 
É possível prever efeitos da redução das desigualdades sociais no exercício não só de direitos sociais, mas também de direitos e liberdades individuais. Para citar apenas um exemplo de concepção simples, basta notar que as violações mais grotescas das liberdades individuais, as mais invasivas da privacidade do indivíduo, ocorrem justamente com a população de baixa renda das vilas e favelas das grandes cidades brasileiras, sujeitas que estão aos abusos de autoridade policiais, de revistas arbitrárias a violações de domicílio.
Contudo, diversos estudos demonstram que o nosso sistema tributário coloca o Estado brasileiro na contramão da efetivação dos direitos humanos através da implementação do art. 3º, III, da Constituição.
 
De fato, a carga tributária é desigualmente distribuída, funcionando o Estado brasileiro como verdadeiro “Robin Hood às avessas”, para usar a eloquente expressão dos grandes críticos do nosso sistema tributário. E, em um Estado Democrático de Direito onde a parcela da renda apropriada pelos 50% mais pobres é quase igual à parcela apropriada pelo 1% mais rico (dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – IBGE, 2007), uma tributação regressiva é um contra-senso de indizíveis proporções.
 
Como relata Amir Khair (2008, p.12), em 2008, quem ganhou até dois salários mínimos pagou 49% dos seus rendimentos em tributos, mas quem ganhou acima de 30 salários pagou apenas 26%.
 
E por que isso ocorre? Como assinalado por Khair e por muitos outros, porque se tributa excessivamente o consumo, em vez do patrimônio e da renda. E a tributação sobre o consumo, como se sabe, permite no máximo seletividade, mas não progressividade.
Segundo dados da Unafisco Sindical, em 2007 os tributos sobre o consumo representaram 67% da arrecadação total, o imposto sobre a renda, 29%, e os impostos sobre o patrimônio, apenas 4% (Hickmann, 2007, p.4). Estes dados servem bem para identificar a existência do problema, mas a regressividade do sistema não é resolvível por uma simples mudança de foco da carga tributária, pois parte do problema é também consequência de uma tributação direta mal conduzida.
 
Neste sentido, Márcio Pochmann, do IPEA, analisando dados do IBGE do biênio 2002/2003, sintetiza a equação da regressividade: não só o peso da tributação indireta (que incide sobre o consumo) é muito maior do que o da tributação direta (que incide sobre renda e patrimônio), mas o grau de progressividade da tributação direta ainda é muito baixo no Brasil (Pochmann, 2008).
 
O resultado é uma sociedade na qual o décimo mais pobre sofre uma carga total equivalente a 32,8% da sua renda, enquanto o décimo mais rico, apenas 22,7% (Pochmann, 2008).
 
Apesar da recente melhoria na distribuição de renda, resultante principalmente das políticas sociais do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o país continua marcado pela alta concentração de renda, o que indica que, conforme alertava Clair Hickmann, é preciso atacar este mal de todas as formas, i.e., não só através da aplicação humanista dos recursos do Estado, mas também (e principalmente) por meio de uma arrecadação justa:
 
Uma conta que poucos gostam de pagar é a dos impostos. Alguns privilegiados conseguem escapar, mas para o cidadão comum a conta aumentou muito nos últimos anos. Em geral, esquecemos que os tributos são também o preço da cidadania, fundamentais para financiar um conjunto de serviços – educação, saúde, previdência e assistência social – que depende da ação do Estado.
 
Mas não basta o Estado arrecadar tributos; é necessário cobrá-los do cidadão que tem capacidade contributiva. Caso contrário, o sistema tributário acaba sendo um Robin Hood às avessas, pois os tributos sobre o consumo oneram principalmente a classe de renda mais baixa, concentrando renda. O inverso ocorre quando a opção é por um sistema tributário progressivo, taxando mais o patrimônio e a renda. Há quem entenda que distribuição de renda se faz apenas via gastos sociais. Porém, diante da elevada concentração de renda no Brasil, é preciso atacar o mal de todas as formas.” (Hickmann, 2007, p.4).
 
A síntese contida na análise do Sr. Márcio Pochmann resume bem a direção a ser tomada rumo a um sistema tributário condizente com os Direitos Humanos. A partir desta direção, passam a ser inaceitáveis (apenas para citar algumas das várias incongruências do sistema): a ausência de regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas; um Imposto sobre Heranças e Doações com alíquota máxima de apenas 8%, como fixado pelo Senado Federal; um Imposto de Renda da Pessoa Física escalonado por tão poucas faixas de renda como o nosso; o tratamento diferenciado das alíquotas sobre os rendimentos do trabalho e do capital; os inúmeros privilégios dados aos grandes contribuintes, como a possibilidade de dedução de juros sobre o capital próprio do lucro tributável (art. 9º da Lei 9.249/95) ou a isenção de Imposto de Renda da remessa de lucros e dividendos ao exterior (art. 10º da Lei 9.249/95).
 
O professor Becho afirmou que a discussão dos Direitos Humanos, aplicada à tributação, é uma ferramenta de defesa do particular contra os Poderes Públicos e, de fato, é o que a dogmática nos demonstra. Porém, diante do gravíssimo e histórico quadro de desigualdade social do país, é preciso enfatizar que a relação entre tributação e Direitos Humanos exige, no mínimo, um sistema tributário progressivo, que democratize o acesso à riqueza produzida pelo povo brasileiro.
 
Referências bibliográficas
 
BECHO, Renato Lopes. Tributação deve respeitar Direitos Humanos. Revista Consultor Jurídico, 27 de julho de 2009. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jul-27/tributacao-respeitar-limites-impostos-pelos-direitos-humanos#autores (última consulta em 29.07.2009)
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2007. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, Rio de Janeiro, v. 28, p.1-129, 2007.
HICKMANN, Clair Maria. Quando os pobres pagam pelos ricos. Le Monde Diplomatique Brasil, ano 1, n. 2, Setembro 2007, p.4.
KHAIR, Amir. Pela justiça tributária. Le Monde Diplomatique Brasil, ano 1, n. 12, Julho 2008, p.12.
POCHMANN, M. Desigualdade e Justiça Tributária. Brasília, 15 de maio de 2008. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/pdf/08_05_15_DesigualdadeJusticaTributaria.pdf (consulta em 18 de março de 2009)
 

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