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Sistema Tributário é tema de entrevista da profª Misabel Derzi

16 de dezembro de 2010

Entrevista com Misabel Derzi foi publicada no Jornal Carta Forense

A professora Misabel Derzi foi destaque na edição do dia 4 de novembro do Jornal Carta Forense, de São Paulo, ao qual concedeu entrevista sobre o tema ‘Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar’.

Confira a entrevista na íntegra:

O Sistema Tributário brasileiro é muito criticado pelo excesso de tributos, neste sentido, a senhora acredita que limitações constitucionais ao poder de tributar são eficientes?

As limitações do poder de tributar previstas na Constituição Federal de 1988 correspondem, mais do que nunca, se considerarmos as Cartas Magnas anteriores, a um rol extenso, o mais amplo daqueles existentes em constituições escritas. São princípios, direitos e garantias fundamentais, que se interpenetram em profusão, enfeixando-se no Estado Democrático de Direito. A normatividade de tais princípios que, como lembra Aliomar  Baleeiro, obedece a razões técnicas, morais, econômicas, éticas e políticas, de que a Ciência das Finanças dá noticia, tem sido reiteradamente consagrada em nosso sistema tributário e é recrudescida no Estado Democrático de Direito.

O Supremo Tribunal Federal tem estado atento às diversas dessas limitações que evitam o abuso e os excessos da Fazenda Pública. Obviamente que há injustiças, a nossa alta carga tributária e o nosso sistema tributário altamente complexo não nos permitem a perfeição. Porém, as limitações constitucionais têm sido em grande medida aplicadas.

Muitos juristas falam que o Direito Tributário se revolucionou na fase em que vivemos, denominadas por estes de pós-positivismo e/ou jusconstitucionalismo. Como a senhora se posiciona sobre este assunto?

Não só o Direito Tributário se revolucionou nas sociedades contemporâneas. Mas qual o papel, a função do Direito nas sociedades contemporâneas? Essa deve ser a questão a nos ser colocada, que vai necessariamente afetar o Direito Tributário. Do Direito se exige, sem dúvida, o desenvolvimento compreensivo da generalização e da estabilização das expectativas de comportamento. Dentro das mudanças contínuas da realidade e de sua alta complexidade, os riscos são tão elevados, que o papel do Direito é insubstituível e funcionalmente destinado, como ensina NIKLAS LUHMANN, a generalizar para estabilizar “as expectativas normativas de comportamento” (Cf. Sistema Giuridico e Dogmatica Giuridica: Trad. Alberto Febbrajo, Bologna, Ed.Il Mulino, 1978, p.59). E pondera: “essas funções vêm colhidas e isoladas sob um ponto de vista específico, em particular sob o ponto de vista da regulação dos conflitos, que vem cumprida mediante um sistema para a decisão dos conflitos mesmo inserida a posteriori”.

Em relação à complexidade cada vez maior da sociedade, o sistema jurídico e a Dogmática representam uma redução daquela complexidade da realidade social. A positivação crescente do Direito resulta da necessidade de o sistema se apresentar como um programa de solução de conflitos.

Caberá então, ao legislador, traçar os programas-metas, com objetivos a alcançar, pensando as conseqüências de suas decisões até o fim. Ele decide entre os interesses postos em questão. Já o operador do Direito, como o juiz, é posto em face dessa seleção prévia, olhando para o input do sistema, onde se situam as fontes de produção legais. Ele não trabalha diretamente com interesses (políticos, econômicos, sociais, morais, etc.), mas com conceitos, ordenações e classificações, em que se converteram aqueles interesses, fechando-se operacionalmente o sistema às intervenções diretas do ambiente externo. Assim, do ponto de vista operacional, somente mergulhamos no Estado de Direito, na medida em que o sistema jurídico se fecha em si mesmo (seus próprios conceitos, categorias, classificações e princípios), sendo “autopoieticamente” determinado. Material e cognitivamente, porém, o sistema jurídico é aberto, já que dentro dos limites possíveis da palavra (categorias, conceitos e princípios), a interpretação colherá as melhores soluções, atualizadas e iluminadas nas aplicações concretas. Pospositivismo e/ou jusconstitucionalismo…mas não consequencialismo ou ativismo judicial desbussolado.

Qual seu posicionamento acerca da discussão doutrinária sobre a imprecisão terminológica em relação ao Princípio da Anterioridade Tributária? Para senhora, possui o mesmo nível de fluidez de um princípio, ou trata-se de uma norma, cujo princípio seria o da segurança jurídica?

De fato, o Princípio da Anterioridade (assim como o da espera nonagesimal) não configura aspecto acidental, flexível ou fluido ou facultativo, mas regra, genérica e abstrata, verdadeira propriedade jurídica essencial à lei tributária, que cria tributo novo ou majora os já existentes. Como tal, representa comando superior, inafastável pela própria lei, a qual não terá validade se determinar a própria eficácia (ou vigência) e aplicabilidade imediatas à sua publicação ou por meio dos regulamentos e outros atos normativos do Poder Executivo, assim como por quaisquer atos executórios e aplicativos da Administração Pública. Integra-se ao estatuto do contribuinte e tem operatividade e eficácia plena e imediata. Conservamos a expressão – princípio – original do autor, ALIOMAR BALEEIRO, constante de sua obra LIMITAÇÕES, mas a anterioridade enquadra-se bem na categoria de regra.

Como a senhora observa o conflito entre o artigo 150,III, a, da CR e o artigo 144 do CTN?

Pensamos que a tese, que beneficia a Fazenda Pública, dá à expressão “cobrar” do art. 150, III, b, c, e “exigir”, do art. 195, § 6º, sentido estreito, incompatível com os valores que a Constituição abriga. Segundo esse entendimento, sendo publicada a lei, ela pode entrar em vigor de imediato e desencadear efeitos, nascendo a relação tributária. O período de espera seria necessário apenas para o desencadeamento da cobrança, convertendo-se em uma espécie de prazo de pagamento. As conseqüências dessa tese são notáveis, e sua aceitação configura a extinção dos princípios que asseguram a não-surpresa tributária. A tese vitoriosa nos tribunais e francamente majoritária na doutrina, que nós defendemos, distingue entre justiça, validade e eficácia da norma. Segundo o aspecto da justiça da norma, entendido como relação de correspondência entre os valores perseguidos pelo ordenamento e a atuação da norma, a verificação da correta compreensão depende desse contraste entre o que é real e o que é ideal. Ora, sob essa perspectiva, a única interpretação compatível é aquela que permite a adequada proteção da segurança jurídica, pela abolição da “surpresa” tributária. Aliás, a evolução histórica da anterioridade, originária do anterior princípio da autorização orçamentária, somente corrobora a idéia de que, ao ser publicada a lei tributária, dissocia-se sua vigência de sua vigência/eficácia.  Enfim, a anterioridade e a espera nonagesimal têm como efeito obstar a vigência, segundo certa corrente doutrinária, ou a eficácia, segundo outra, das normas que criam ou aumentam qualquer tipo de exação fiscal (salvo as exceções expressamente consignadas no Texto), para período posterior ao de sua publicação. Também a irretroatividade é objetiva e refere-se ao fenômeno da vigência das normas no tempo.

A doutrina e a jurisprudência, que já não vinham aceitando a Súmula nº 584 do Supremo Tribunal Federal, tomaram novo alento com a Constituição de 1988. Ao mencionar o princípio da irretroatividade de forma específica para o Direito Tributário, a nova Carta aperfeiçoou a redação tradicional, referindo-se a fato jurídico pretérito no art. 150, III, a, embora genericamente já o tivesse consagrado, por meio da vedação histórica de ofensa ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, no art. 5º, XXXVI.

Pode nos explicar como se dá a formação da irretroatividade qualificada?

No capítulo II e III do livro Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar temos uma longa discussão sobre a irretroatividade. No capítulo II, em especial, falamos sobre a irretroatividade qualificada, mais conhecida como anterioridade.

A anterioridade desvincula da lei orçamentária a eficácia e a aplicação das leis tributárias. Antes, tínhamos no Brasil o princípio da autorização orçamentária. Por ele, as leis tributárias, uma vez publicadas, vigentes e eficazes, estariam sujeitas, ano a ano, a uma prévia autorização contida na lei orçamentária, para que pudessem surtir efeitos. Não sobreviveu, na Constituição de 1988, esse antigo princípio da autorização orçamentária, que foi substituído pelo da simples anterioridade. Este se limita a adiar a vigência/eficácia e a aplicação da lei, que institui tributo novo, ou majora um já existente, para o exercício financeiro subseqüente ao de sua publicação, sendo irrelevante o fato de a lei orçamentária ter ou não previsto e autorizado a arrecadação do novo tributo, conforme art. 150, III, b. À anterioridade soma-se agora a espera nonagesimal, após o advento da Emenda Constitucional nº 42/2003, que, sem restabelecer o princípio da autorização orçamentária, atenua-lhe as perdas.  O princípio da anterioridade nasceu de um paradoxo bem brasileiro, como lembra ALIOMAR BALEEIRO. Consagrado o princípio da autorização orçamentária de forma inequívoca na Constituição de 1946, começaram-lhe as violações na ordem dos fatos, infringências que culminaram em sua substituição pelo princípio da anterioridade.

Nos impostos de período, como o da renda, a lei nova, majoradora do tributo e editada antes de encerrado o ano-base, por força da anterioridade, terá a vigência adiada para o exercício subseqüente, quando já terá sido consumado o fato gerador. Inaplicável pois a lei nova. Diz-se que o fenômeno é o da irretroatividade, qualificada pela anterioridade. Bem o disse o Min. CARLOS MÁRIO VELLOSO no RE 138.284-8, Ceará, publicado no dia 01º de Julho de 1992. O princípio da irretroatividade estará qualificado pela anterioridade ou pela espera nonagesimal. É que, o princípio da anterioridade, que adia a vigência ou eficácia da lei nova, instituidora ou majoradora de tributo, para o exercício subseqüente ao de sua publicação, impede a aplicação da norma nova, ainda que ela seja editada antes do encerramento do ano-base. Isso porque, ao desencadear seus efeitos apenas no exercício financeiro seguinte, por força do princípio da anterioridade, a lei nova encontrará totalmente fechado o período relevante para a determinação da renda (ano-base anterior), configurando-se a sua retroação sobre fato pretérito, se aplicada.

Como a senhora se posiciona sobre a retroatividade da lei interpretativa?

Minha posição sobre esse tema é bastante parecida com a de Aliomar Baleeiro, valendo, portanto, reproduzi-lo: Lei que interpreta outra há de ser retroativa por definição, no sentido de que lhe espanca as obscuridades e ambigüidades. Mas contaminar-se-á de inconstitucionalidade se, em matéria fiscal, criar tributos, penas, ônus ou vexames que não resultavam expressa ou implicitamente do texto interpretado. Tais inovações só alcançam o futuro. Se, como muitos escritores já pretenderam, a lei interpretativa é outra lei, por seus efeitos inovadores, estes só poderão ter eficácia a partir de sua publicação. Será retroativa se declara menos onerosa a posição do contribuinte ou daquele que lhe é equiparado” (BALEEIRO, Direito Tributário Brasileiro). Além disso, lei interpretativa que altere a interpretação da jurisprudência já consolidada, deve valer somente para o futuro. É o caso da Lei Complementar nº 118/05. Nesse caso ela tem efeitos inovadores, já que o legislador não se antecipou a interpretação autêntica, permitindo que o Poder Judiciário, nesse caso o STJ, consolidasse outro entendimento da lei. Logo, a Lei Complementar nº 118/05 deve valer para o futuro, não se admitindo no caso a retroação.

Dentre tantos outros feitos a senhora também é conhecida por ser a maior autoridade em irretroatividade das decisões judiciais em face da coisa julgada e do princípio da isonomia. Pode nos explicar seu posicionamento sobre o assunto?

Defendemos que toda decisão judicial, no momento em que se firma em uma das alternativas possíveis de sentido (a melhor) dos enunciados legislativos (inclusive da Constituição), configura encontro do Direito. Se, supervenientemente, o Poder Judiciário altera e muda a sua decisão, escolhendo uma outra alternativa (antes possível, em razão do leque de significados da cadeia de signos), cria nova norma, específica e determinada. Tal norma nova equivale a uma nova lei, pois a lei anterior, ainda vigente no sentido formal, tinha sido dotada de um só conteúdo, unívoco, pois sofrera o esvaziamento dos demais sentidos alternativos, por decisão do próprio Poder Judiciário. O problema da retroação das sentenças se apresenta, então de forma aguda, nas hipóteses de reversão de jurisprudência. Inexistindo alteração da lei ou da Constituição em que se fundou a norma judicial anterior como precedente, igualmente inexistindo alteração na ordem dos fatos, dentro do mesmo grupo de casos similares, que permanece sub iudice, poderá haver nova interpretação judicial, criando-se nova norma judicial, com rejeição do precedente. Estaremos em face, assim, de duas normas judiciais contrastantes, a segunda reformando a primeira. Em relação à última norma judicial, modificativa da anterior, é que se colocam, com intensidade, valores e princípios a ponderar, como segurança, irretroatividade, proteção da confiança e boa fé. Somente neste momento, poderão ser invocados os princípios da irretroatividade, da proteção da confiança e da boa-fé em relação ao Poder Judiciário, pois teremos: (a) uma decisão anterior consolidada, sob a vigência da qual foram concretizados atos e fatos jurídicos, como indutores de confiança; (b) o advento de outro ato, também do Poder Judiciário, nova sentença modificativa da anterior, vista pelo contribuinte como quebra da confiança gerada; (c) a responsabilidade pela violação da segurança/confiança, por meio da proteção dos fatos jurídicos, ocorridos no passado, contra a retroação da nova norma judicial.

Então podemos concluir que a sentença transitada em julgada está vinculada a um principio maior que o da segurança jurídica?

A sentença transitada em julgada, relativa a solução de conflito individual, está vinculada à segurança jurídica. Isso decorre do próprio texto constitucional. E a segurança jurídica está vinculada a outros princípios.  Por sobre a segurança, vê-se o Estado de Direito, que responde, por sua vez, à Justiça. Agora, a norma judicial que se extrai da sentença transitada em julgada, ou da jurisprudência, que irá afetar e influenciar outros casos, essa, também, deverá se submeter ao Princípio da Justiça, dentro do qual ainda se incluem, necessariamente, sem nenhuma oposição, a segurança jurídica, a liberdade, os princípios da proteção da confiança, da boa-fé e da irretroatividade.

O princípio da irretroatividade não protege apenas o cidadão contras as mudanças legislativas, como também, contra as mudanças interpretativas?

A Constituição da República não se refere à irretroatividade das modificações da jurisprudência, restringe-se às leis. Nesse sítio, ressurge a questão da proteção da confiança e da boa-fé.  É preciso lembrar que a força e a intensidade do princípio da irretroatividade das leis dispensam o exame, caso a caso, no Brasil, da existência de confiança subjetivamente confirmada e do investimento da confiança. A Constituição Federal adotou o princípio de forma objetiva, de modo que, nas hipóteses clássicas, de fatos geradores pretéritos, inteiramente ocorridos no passado, não importa que o contribuinte já espere o advento da lei nova, ou que a lei já tenha sido publicada, estando em curso a vacatio legis, ou se aguardando o próximo ano financeiro para a vigência da lei nova (anterioridade). Todos os fatos e atos jurídicos aperfeiçoados em data anterior à data da lei nova, estarão regidos pela lei anterior. Não aflora, não emerge o princípio da proteção da confiança, a não ser de forma difusa, como confiança sistêmica. Em face de uma lei francamente retroativa, porque vulneradora de fatos e efeitos ocorridos em momento anterior à sua vigência, não cabe indagar sobre a confirmação da confiança, sobre o grau de investimento do contribuinte (se ele deveria ter previsto ou não a mudança) ou de sua boa-fé objetiva se ele concretizou atos e negócios às vésperas da entrada em vigor da nova lei. A aplicação do princípio da irretroatividade será reconhecida, mesma na hipótese de fatos jurídicos em que a vontade do contribuinte é inexistente, a saber, a morte do de cujus, que abre a sucessão. Com isso, temos que o princípio da irretroatividade, na ordem positiva nacional, adquire contorno próprio, naquelas situações em que a invocação da proteção da confiança e a remissão à boa-fé não são necessárias. Os dois últimos princípios éticos podem continuar submersos no sistema, em tais circunstâncias específicas. A mesma técnica, os mesmos critérios de segura aplicação do princípio da irretroatividade das leis devem reger a irretroatividade das modificações jurisprudenciais. É evidente que a confiança está pressuposta, como confiança sistêmica, difusa. Todos devem acreditar, crer, confiar honestamente nos comandos do legislador e dos tribunais superiores. E isso se protege. E se protege de modo tão intenso, que a responsabilidade pela confiança não emerge, nem precisa ser percebida, está lá onde a segurança reina absoluta. Entretanto, cessam nesse ponto as transposições mais simples, a serem feitas para as modificações jurisprudenciais. As modificações jurisprudenciais não estão submetidas ao princípio da anterioridade e da espera nonagesimal, obrigatórios para as leis tributárias. Então, a partir desse momento, afloram com muito mais força os princípios da proteção da confiança e da boa-fé objetiva. É preciso destacar, antes que algum leitor imprudente tente aplicar a irretroatividade para todo e qualquer entendimento jurisprudencial, que a ausência de coisa julgada, a estabilizar o entendimento do Supremo, efetivamente não permite a formação de uma expectativa normativa, de jurisprudência, sob a vigência da qual tivessem acontecido fatos jurídicos, a merecerem proteção contra a retroação, a partir da vigência da nova decisão. Em tais circunstâncias, com propriedade, evidencia-se a inaplicabilidade plena do princípio da irretroatividade, pois ele não seria também aplicável para as leis que não chegam a nascer, não são definitivas ou não entram em vigor. Mas, por outro lado, se existe uma plena responsabilidade pelas declarações feitas, até mesmo por informações fornecidas por servidores públicos, é muito mais razoável supor a responsabilidade por despachos e decisões monocráticas de Ministros da Corte Suprema, que aplicam a jurisprudência anterior, como se fosse precedente consolidado, sem que essa tenha se tornado coisa julgada. Em decorrência, não se pode falar em irretroatividade, não será a hipótese, mas em proteção da confiança, casada com a boa-fé objetiva.

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