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Extinção sorrateira das deduções familiares no IRPF para milhões de contribuintes

20 de janeiro de 2022

Misabel Derzi

Profa. Titular de Direito Tributário da UFMG – aposentada

 Fernando Moura

Doutor em Direito Tributário pela USP

 

Onde estão a UNAFISCO e o SINDIFISCO? De tempos em tempos, um Secretário da Receita ou Ministro da Economia ameaçava extinguir, na apuração do IR devido pelas famílias, a dedução tradicional com dependentes, educação e saúde. Não foi diferente desta vez com o PL 2.337/21. Mas, fizeram-no, silenciosamente, à sorrelfa.

Agora, foi novidade o silêncio da UNAFISCO/SINDIFISCO, órgãos sindicais dos auditores fiscais, bons agentes técnicos (gente da qual os brasileiros deveriam se orgulhar) que, atentos à Constituição, outrora sempre proclamaram a pessoalidade na apuração da capacidade econômica, a progressividade e a proteção da família. Contra os argumentos surrados dos governos de plantão em prol da praticidade, da mera proporcionalidade ou ainda de um flat tax, vinham a público e opunham-lhes demonstrações de que o peso da indedutibilidade dos gastos familiares seria insuportável para os mais pobres e a classe média, beneficiando os mais ricos. Sobretudo, lembravam que uma alíquota reduzida de 15% para todos, como sugeriam à época, vedadas quaisquer deduções, seria injusta, quer do ponto de vista absoluto ou relativo. Privar aqueles que ganham R$2 mil reais mensais de R$300 reais pode significar o valor da escola; ou de gasto médico; de transporte ou mesmo de alimentos se a família é numerosa. Outro significado haverá se a renda disponível de quem ganha R$100 mil reais for reduzida para R$85 mil reais mensais, mesmo considerando a indedutibilidade. Invocavam as teorias econômicas do sacrifício, ou do benefício, ou da utilidade marginal da renda, ou da pessoalidade, ou ainda da progressividade ou da obrigatoriedade da educação e sustento dos filhos. Importa apenas que a Constituição de 1988 fez suas escolhas e os auditores da Receita Federal, tão preparados tecnicamente para arrecadar, sabiam pôr a técnica a serviço dos valores e princípios da Constituição.

O polêmico PL 2.337/21, brandindo a bandeira da justiça, propõe extinguir a isenção do IR sobre a distribuição de lucros e dividendos, instituída há mais de 20 anos pela Lei 9.249/95, art. 10. Para isso, exceção feita para os contribuintes com limites de faturamento previstos na LC 123, prevê que, a partir de 2022, os resultados/lucros distribuídos por pessoas jurídicas passarão também a ser tributados na fonte, além dos tributos pagos na pessoa jurídica, ou seja, no momento do pagamento ao sócio, pessoa física ou jurídica, inclusive isenta, à alíquota de 15 %. Estabelece-se, no referido projeto, que a incidência ocorrerá exclusivamente na fonte, o que significa dizer que os rendimentos em questão serão tratados isoladamente; não serão considerados como antecipação do imposto devido ao final do ano fiscal e, por isso, não merecerão quaisquer deduções que beneficiam hoje as remunerações de assalariados, autônomos e servidores públicos. E nisso reside exatamente a estratégia que passa desapercebida de muitos, em especial dos milhões de contribuintes prejudicados.

As premissas são incorretas. A primeira delas diz respeito à equiparação de quaisquer lucros distribuídos aos dividendos de sociedades abertas, como se fossem rendimentos do capital em qualquer hipótese. A realidade comprova o equívoco. Milhões de pequenas empresas não são optantes do Simples, que reúnem empreendedores comerciais e prestadores de serviços, além das sociedades de serviços profissionais, todas responsáveis pela massa de empregos gerados no País, e que auferem seus resultados por meio do trabalho personalíssimo dos sócios que as compõem. Seus rendimentos, sendo fruto do trabalho pessoal dos sócios, aproximam-se da natureza das remunerações tradicionais, contrapartida do trabalho (salários, proventos e subsídios públicos, etc.). Seria possível equiparar tais rendimentos aos dividendos recebidos pelos acionistas de uma companhia aberta? É evidente que não.

Exatamente por essa razão, na Europa e nos EUA, as sociedades de pessoas podem optar por levar o lucro apurado – sem pagar qualquer tributo na pessoa jurídica – à tabela progressiva do imposto de renda das pessoas físicas, aí gozando das mesmas limitações e benefícios concedidos aos demais trabalhadores. Somente as sociedades de capital ou corporações, obrigatoriamente, pagam o IR na jurídica e na física com os mecanismos de integração previstos, créditos ou alíquotas integradas.

Propõe-se criar, entre nós, uma punição para aqueles que, em vez da autonomia individual, do serviço público ou do emprego, constituíram pessoas jurídicas, atraídos e confiantes nas promessas das leis tributárias. Tais leis, paralelamente às teorias diversas de unificação da incidência apenas na pessoa física ou na jurídica, entre nós, pragmaticamente, pretendiam facilitar as privatizações e trazer à luz um volume intenso de atividades informais. Isso é tão verdadeiro que a isenção da distribuição dos lucros acarretou um aumento muito significativo da arrecadação ao invés de queda e reduziu a informalidade. Mas nesse artigo não estamos a discutir a atual mudança proposta no PL 2.337/21, a discutível incidência dos tributos tanto nas sociedades como na distribuição.

Estamos a criticar, por sua inconstitucionalidade, a equiparação entre a distribuição dos lucros gerados pelos trabalhos dos sócios aos dividendos das sociedades de capital. Com isso, milhões de famílias de classe média serão projetadas em tratamento prejudicial, francamente injusto. À socapa, o Fisco conseguiu o que sempre quis: desconsiderar os gastos familiares, a saúde e a educação dos filhos somente porque são dependentes de sócios/empresários que geram emprego e renda por meio do trabalho pessoal.

Estamos esperando a reação dos valorosos auditores fiscais. Estamos esperando a reação dos senhores Senadores que, certamente, no mínimo, considerarão a tributação na fonte da distribuição dos lucros como singela antecipação do IRPF devido ao final do exercício. Saberão isolar a chantagem do custeio do bolsa família ou auxílio, para recuperar o tratamento isonômico imposto pela Constituição. O que se fez agora, sorrateiramente, ficará evidenciado a partir de janeiro de 2022, quando esses milhares de famílias penalizadas, privadas de uma discussão aberta, descobrirem o que significa “tributação exclusiva de fonte”. Summa injuria.

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