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Interpretação da Receita para “serviços hospitalares” afronta a Constituição
Por Editor Sacha Calmon
15 de fevereiro de 2018
A legislação do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) permite o cálculo dos tributos sob um percentual bastante reduzido para as sociedades que prestam “serviços hospitalares” (artigos 15 e 20 da Lei 9.249).
E é aí que reside a controvérsia: a Receita adota uma leitura restritiva da expressão; as sociedades médicas esperam por uma interpretação diferente.
A partir dessa disputa, pretendemos fazer um exercício de interpretação jurídica aplicada. Para tanto, após expor os fundamentos da interpretação fiscal, passaremos a reinterpretar a mesma legislação por meio de diferentes ferramentas.
O texto será não só do interesse específico das sociedades médicas e de quem presta assessoria a elas, como também dos profissionais e acadêmicos interessados em interpretação e argumentação jurídica como um todo. Vamos lá.
A interpretação fiscal
Em linhas gerais, a interpretação fiscal é a de que, para se enquadrar no percentual reduzido (8% de IRPJ e 12% de CSLL), a sociedade deve adotar a forma empresária e ter estrutura material e pessoal própria. Sem isso, os serviços prestados por ela não poderão ser tidos como “hospitalares”.
É o que se depreende do entendimento firmado em variadas soluções de consulta e decisões administrativas, como: Solução de Consulta Disit/SRRF08 8.010, 15/7/2016; Cosit, Processo de Consulta 47/14, publ. 4/4/2014; Cosit, Solução de Divergência 11/12, publ. 30/8/2012; Solução de Consulta Disit/SRRF06 27, 29/3/2012; Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Curitiba, 2ª Turma, Decisão 06-32096, j. 2/6/2011, publ. 2/6/2011; Solução de Consulta Disit/SRRF08 112, 27/04/2011; Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Campinas, 2ª Turma, Decisão 05-25437, j. 15/4/2009, publ. 15/4/2009; Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Campinas, 4ª Turma, Decisão 05-24911, j. 16/2/2009, publ. 16/2/2009; Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Salvador, 2ª Turma, Decisão 15-12556, j. 27/4/2007, publ. 27/4/2007; Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Salvador, 2ª Turma, Decisão 15-13618, j. 3/9/2007, publ. 3/9/2007; Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Brasília, 2ª Turma, Decisão 2.397, j. 8/8/2002, publ. 8/8/2002.
No entanto, há ótimos argumentos para qualificar a leitura fiscal como restritiva e incompatível com o que exige o Direito brasileiro.
Há sociedades que, embora não contem com pujante estrutura pessoal e — sobretudo — material própria, ainda assim realizam serviços hospitalares, devendo receber o tratamento tributário correspondente.
A demonstração disso se dá a partir de três ferramentas interpretativas: a histórica, a teleológica e, por fim, a sistemática.
A interpretação histórica
A legislação emprega a expressão “serviços hospitalares”, mas não a define.
Ausente a definição legal, há que se ater metodologicamente àquele sentido que, dentre os inicialmente possíveis, se revele o que melhor realiza a Constituição.
Historicamente, a expressão “serviços hospitalares” já havia sido empregada, por exemplo, no artigo 8º, parágrafo 4º, alínea “e” da Lei 1.229 de 1950.
A citada lei cuidava de normatizar algumas das carreiras junto ao Estado, incluída aí a de médico. Ao fazê-lo, empregou a expressão “serviços hospitalares” para designar os serviços médicos ou de saúde como um todo.
Tal sentido é incompatível com a noção restritiva da interpretação fiscal, que espera que o prestador do serviço hospitalar seja também o proprietário da estrutura hospitalar. O conceito de serviço hospitalar da Lei 1.229/50 faz o contrário ao entender que os próprios profissionais da saúde prestam serviços hospitalares.
A interpretação teleológica
Além da interpretação histórica, também a interpretação teleológica reforça a conclusão alcançada. A justificação jurídica para o coeficiente reduzido assenta-se na combinação do princípio da capacidade econômica com outro valor constitucional da maior dignidade: a promoção da saúde.
Do ponto de vista estritamente econômico, como o lucro se dá pela subtração do preço final pelo custo de produção e como os tributos são parte (importante) do custo de produção, um coeficiente reduzido representa uma possibilidade maior de lucro e, com isso, um incentivo econômico para que sociedades sejam formadas com o intuito de explorar essa área de atuação. A própria Constituição estimula as ações privadas em áreas como a da saúde.
A interpretação em epígrafe foi reconhecida pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe a última palavra quanto a dissídios interpretativos de legislação federal, em sede de recurso repetitivo (STJ, 1ª Seção, rel. min. Benedito Gonçalves, REsp 1.116.399/BA, j. 28/10/2009, DJe 24/2/2010).
Na ocasião, o STJ compreendeu que a expressão “serviços hospitalares” do artigo 15 da Lei 9.249/95 abrange “aqueles [serviços] que se vinculam às atividades desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde”, de sorte que, “em regra, mas não necessariamente, são prestados no interior do estabelecimento hospitalar”.
A interpretação sistemática (e conforme a Constituição)
Além do argumento constitucional baseado na proteção e promoção da saúde, a interpretação fiscal pode ser questionada também com base no princípio da legalidade, pois cria uma distinção inexistente na lei por meio de ato infralegal — qual seja, a distinção entre serviços hospitalares prestados por estrutura própria e serviços hospitalares prestados mediante estrutura de terceiro(s).
Ademais, ao criar distinção inexistente no texto legal, termina por contrariar também os princípios constitucionais e tributários da igualdade e da não discriminação.
Com efeito, a partir da norma de igualdade, o STF já decidiu “estender os efeitos da norma contida no preceito legal a universo de destinatários nele não contemplados” (RE 402.748, AgR e RE 418.994 AgR, rel. min. Eros Grau, j. 22/4/2008, 2ª T, DJE de 16/5/2008. RE 405.579, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 1º/12/2010, P, DJE de 4/8/2011). A mesma ratio, a contrario sensu, veda que os efeitos da norma contida no preceito legal sejam restringidos/retirados de um destinatário que, levado em conta apenas o texto e os seus sentidos mínimos, está, sim, ali contemplado.
Em conclusão, a interpretação fiscal conflita também com a própria lógica constitucional de favorecer empreendimentos de pequeno e médio porte, pois aquelas sociedades de porte menor, que avocam para si a estrutura alheia para realizar seus serviços hospitalares, terminariam com uma carga tributária muito maior, tão maior a ponto de inviabilizar ou dificultar enormemente a sua sobrevivência jurídica e econômica.